Graduado em Letras e Ciências Jurídicas e Sociais o renomado professor de Literatura Ivan Russeff possui mestrado e doutorado em Educação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2006. Atualmente, integrando o Grupo Acadêmico Pedagógico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), Ivan tem experiência na área de Educação, com ênfase em Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa, História e Filosofia da Educação.
Em entrevista ao Jornal Em Foco, o professor fala de como está a Literatura atualmete além de fazer uma homenagem ao centenário de morte do autor Machado de Assis.
Em Foco: Antigamente víamos com mais facilidade autores de renome na literatura e na poesia, coisa que acontece mais raramente hoje em dia. Você acredita em uma defasagem de bons autores? Se sim por que isto vem acontecendo
Ivan Russeff: Quando se indaga por que há poucos autores de renome, atualmente, na Literatura, a resposta mais facilitaria seria afirmar que estamos passando por uma crise de valores, que não há mais as genialidades dos tempos passados, ou que a Literatura está perdendo o seu atrativo, como forma de fruição estética e de experiência vital. Prefiro responder de forma afirmativa, ou seja, a Literatura continua exercendo um forte apelo sobre a sociedade; a leitura de uma obra de arte não perdeu o seu fascínio e o aprimoramento dos homens, mais do que nunca, tem na Literatura uma de suas mais significativas formas de expressão e recepção; ou seja, nós nos aprimoramos por meio da Literatura, quer escrevendo as nossas experiências e ansiedades, como autores, quer recebendo e fruindo-as, como leitores. Ora, o que constatamos, neste nosso mundo de múltiplos apelos intelectuais e estéticos, é uma diversidade e uma popularização de manifestações artísticas que concorrem com a Literatura. Assim, a facilidade com que o público tem acesso a filmes, mostras de pintura, fotografia e escultura, recitais de música, encenações teatrais e tantas outras manifestações diretas ou por meio de aparatos tecnológicos, acabou multiplicando expressivamente o número de obras e de autores. Esse fenômeno “invasivo e massivo” tirou a primazia de algumas manifestações artísticas digamos, clássicas, como é o caso da Literatura. Acresça-se a esse fenômeno de massificação, a tendência “desaurificante” do mundo contemporâneo, em relação a todas as artes; ou seja, a obra de arte perdeu a sua “aura” que a tornava única e como que ungida pelas musas. Como ocorreu com a Pintura, que se “desaurificou” com o advento da fotografia, mundanizando/vulgarizando os seus processos e produtos, também com a Literatura, os autores célebres, ungidos pelas musas, estão concorrendo com os autores mundanos e nem tão ungidos pelas musas; entretanto, embora “desaurificados”, esses autores têm o que dizer de seus guetos, de seus pequenos e insignificantes mundos... Se isso vulgariza a Literatura e a torna menos digna dos olhares olímpicos, de outro lado, trata de miudezas sublunares a que, talvez, o olhar dos grandes escritores não estivesse afeito. Por fim, também seria considerável, nesta discussão, o quanto a Literatura se ressente de uma tendência aligeiradora e de superficialização da cultura e da fruição estética. Assim, é um embate que vai exigir dos autores contemporâneos muita sensibilidade e sagacidade para enfrentar a predominância da “snack culture”, em que retalhos literários, fragmentos musicais, pequenos esquetes teatrais, “vídeos-minuto”, de fácil e rápida digestão, vêm substituindo obras de mais fôlego. Enfim, é o “fast-food” substituindo os grandes manjares, constituindo-se na expressão máxima de uma época trepidante e veloz. Mas não foi assim que os nossos modernistas enfrentaram os desafios de sua época, mais veloz e enérgica que o “belle-époque”, investindo nos “poemas-piada”, breves e incisivos como um “hai-kai”?
Em Foco: Você acredita que há uma falta de interesse da população com relação as obras literárias?
Ivan Russeff: Ao se falar em “desinteresse popular” pela Literatura, é imediata a lembrança de fenômenos como a saga de Harry Potter, ou a obra sempre avidamente consumida de Paulo Coelho. O que dizer? Com certeza, os milhões de exemplares desses autores, que se esgotam em tempo recorde, dão provas concretas de que não há o tão propalado desinteresse pela Literatura. Bem, a ressalva é sempre a mesma: são obras de suspeitíssimo valor estético. Ora, fica o aviso de sempre aos bons escritores de que, se podemos o mais, que é escrever a boa literatura, podemos o menos, que é seduzir o público leitor. Pode não ser tão simples, assim, mas será esse o eterno desafio dos escritores. “É dar tratos à bola”, como dizia Monteiro Lobato, pois leitores não faltam: a sua saga do Sítio do Picapau Amarelo aí está como emblema de convite à leitura e de forte sedução popular. A par disso, é óbvio, a boa educação, informal ou escolar, é indispensável para a formação de leitores; afinal, o único tropeço fatal para a Literatura, para além do desinteresse, ou falta de gosto estético, é o analfabetismo. Mesmo assim, sabemos que a leitura compartilhada, em que uma pessoa lê para um grupo, pode suprir provisoriamente essa carência. Assim mesmo, isto só é possível se houver um forte apelo cultural e político que provoque esse interesse pela obra literária, como ocorria com os anarquistas do início do século XX que compartilhavam suas leituras, em seus centros operários de cultura. A literatura entre esses trabalhadores humildes tinha um forte apelo político-cultural que a vida solidária e os anseios libertários tinham despertado.
Em Foco: Quais escritores e obras apresentam maior relação com a atualidade? E como podem ser usadas com os acontecimentos atuais?
Ivan Russeff: Vou me ater, nesta questão, a três autores brasileiros contemporâneos e já consagrados pela crítica e pelo público. Assim, a poesia de um Drummond é eterna pela temática centrada nos conflitos existenciais do homem contemporâneo, que se desfaz em “constelações de problemas”, como, também a de Manoel de Barros, a revolver aquela miúda contingência humana que se arrasta na vida, deixando rastros de prata do “mijo do caramujo”. Mas, o que dizer de Ferreira Gullar ao nos alertar, impertinente e mordaz, de que no Piauí “de cada 100 crianças que nascem, 78 morrem antes de completar 8 anos de idade”? E por aí poderíamos nos alongar, entre “clarices e joões”, desfiando rosários de autores nacionais, indispensáveis para a nossa educação estética, sentimental e política. A literatura brasileira, portanto, é pródiga em autores e obras relevantes para a nossa formação, basta esticar os olhos e tomá-los nas mãos.
Em Foco: Como o senhor percebe a influência da obra de Machado de Assis na literatura brasileira contemporânea?
Ivan Russeff: Eis aqui o nosso infalível Machado de Assis, presença obrigatória nas rodas literárias e entrevistas, especialmente neste centenário de sua morte. Sua influência é enorme entre os nossos escritores contemporâneos, seja pelo cuidado com a língua portuguesa; seja no alerta aos danos provocados pelos adornos excessivos do estilo; seja na compreensão, subentendida em seus textos, de que Literatura é sobretudo emoção e fantasia, o que nos faz fugir da realidade, para melhor compreendê-la; seja, enfim, pelo humor sutil –e nem por isso menos crítico- com que devassa a sociedade brasileira e, mais ainda, a alma humana, expondo-as, desse modo, ao olhar comovido/compreensivo do leitor. Todos esses aspectos machadianos impregnaram a literatura contemporânea, elevando-a e robustecendo-a como manifestação artística, constituidora, por assim dizer, do nosso caráter nacional.
Em Foco: Há muito ainda a se conhecer da obra de Machado?
Ivan Russeff: Como todo escritor universal e complexo, Machado de Assis deixou-nos uma obra inesgotável. A cada geração, a obra machadiana apresenta novas interrogações e diferentes desafios interpretativos, como se fosse um caleidoscópio; e o sorriso sorrateiro do autor estará sempre nas entrelinhas, deliciando-se com as nossas perplexidades e dúvidas, frente ao seu “decifra-me, ou te devoro!”.